Céu Salazar
entre os bilros e as palavras
Texto: Ana VascoA trajetória profissional de Céu Salazar, uma ex-jornalista que trocou as redações agitadas por um tranquilo ateliê de rendas de bilros em Vila de Conde, reflete a perfeita fusão de memórias familiares, dedicação artística e do magnetismo que o artesanato português exerce sobre aqueles que o conhecem profundamente. Ao explorarmos as suas raízes familiares, percebemos que Céu cresceu num ambiente onde as rendas são os principais fios de conexão com o passado. Este legado, enriquecido por tradições profundas e sustentado pela força das mulheres que as teceram e as preservaram ao longo dos tempos, moldou Céu, transformando-a numa artista singular, a guardiã de uma herança cultural valiosa.
A Comunicação e as Rendas
Céu Salazar aprendeu a trançar os bilros aos três anos de idade, antes mesmo de saber escrever. Foi instruída pelas melhores: a sua avó, Julieta Estrela, cofundadora e mestra da Escola de Renda de Bilros em Vila do Conde em 1919, dedicou mais de 40 anos ao ensino desta arte. Na década de 50, Julieta foi sucedida na escola pelas suas filhas, Laura e Beatriz Estrela – mãe e tia de Céu. No entanto, a menina que frequentava diariamente a escola de bilros durante a sua infância nunca imaginou que o artesanato viria a ser a sua profissão.
Formada em Comunicação Social, Céu exerceu o jornalismo por mais de um quarto de século. Apesar de ter construído uma carreira relevante com as palavras, tanto faladas como escritas, percebeu que, ao longo dos anos, enquanto o jornalismo lhe permitia contar histórias, era nas rendas que encontrava o seu próprio enredo, mais belo e singular, com raízes profundas. A partir de 2016, motivada pelo desafio de reencontrar as suas origens, Céu voltou-se inteiramente para o trabalho manual, criou a sua própria marca, abriu o seu ateliê na cidade e certificou os seus produtos. Desde então, entrega-se à arte dos bilros de forma intensiva, muitas vezes por mais de 12 horas diárias, consumida pela meticulosidade que a qualidade das rendas exige — um legado de precisão transmitido de mãe para filha.
Quadradinhos de inovação
Recentemente, Céu Salazar concluiu a sua peça preferida, uma toalha que é uma das rendas mais belas e maiores que já fez. Este trabalho, impregnado com a aura dos tempos antigos, apresenta uma complexidade que poucas rendilheiras aceitariam enfrentar. Por ser um projeto muito grande, que implicou custos elevados e um longo período de execução, Céu partilhou as responsabilidades com outras rendilheiras experientes. Esta decisão facilitou a gestão do trabalho e fortaleceu a troca de conhecimentos entre as artesãs, garantindo o respeito pelos métodos tradicionais.
A consciência de Céu Salazar sobre a importância do trabalho colaborativo vem da experiência com uma linhagem de mestras em rendas que não trabalhavam sós e do entendimento de que um único bilro não tece rendas, tal como uma única artesã não sustenta uma tradição. Esta visão diferenciada permite que Céu dedique tempo ao desenvolvimento de outros produtos inovadores que combinam a delicadeza das rendas com a robustez de materiais como a prata e o ouro; a criação de elementos decorativos para interiores, como sofás e candeeiros; e a elaboração de peças menores e vendáveis, como braceletes, brincos ou marcadores de livros.
Os presépios feitos em renda são uma das grandes marcas do trabalho de Céu Salazar. A sua criação baseou-se em moldes vindos do Leste Europeu, totalmente adaptados para incorporar as técnicas tradicionais da renda. Para formar o corpo dos personagens, Céu usa o bilro como um elemento estrutural central. As figuras são arrematadas com entrelaçados complexos, que conferem volume e detalhe, transformando linhas simples em contornos tridimensionais distintos. Com técnicas inovadoras, Céu tem revitalizado a aplicação da renda em formatos não convencionais.
Conexões que Perduram
Todo o trabalho de Céu Salazar entrelaça-se em redes, desde as delicadas tramas de rendas que cria desde a infância à vasta rede de conexões locais, desenvolvida durante a sua carreira no jornalismo. Estas ligações profissionais facilitam a interação de Céu com a comunidade e promovem o seu artesanato. A presença nas redes sociais e em eventos locais também fortalece a sua visibilidade e multiplica as oportunidades de negócio.
Na sua jornada entre bilros e palavras, Céu Salazar teceu uma vida rica em conhecimentos, experiências e exemplos. As rendas de Céu abrigam histórias que têm o poder de fortalecer laços comunitários e pessoais. Ao transformar simples fios em complexas obras de arte, Céu reafirma a renda de bilros de Vila do Conde como um símbolo de identidade cultural que ecoa pelo mundo. O seu legado, tão intrincado quanto os artefactos que produz, demonstra que as palavras e as rendas têm o poder de unir, embelezar e perpetuar tradições. As peças que Céu cria são emblemas da forte herança cultural da região, tecidas com fios de uma narrativa pessoal que é, simultaneamente, universal — um reflexo da beleza duradoura do artesanato humano.